O que é um inseto?
Três pares de pernas, corpo segmentado em cabeça, tórax e abdome, ter olhos compostos e antenas são alguns dos típicos ingredientes que compõem a “receita de bolo” de um inseto - ou ao menos é o que me ensinaram na faculdade. Mal sabia eu, àquela altura, que no futuro essa lista passaria a incluir também traços como escamas, pelos, penas, asas e dentes. Se você é um pouco mais chegado na parte acadêmica da biologia, já está me lendo de cara feia por conta desse pedaço final, mas vou tentar explicar - eu juro!
Nós que estudamos os animais somos muito acostumados com a ideia de categorizar eles a partir de suas características físicas (eu sei, moleculares e etc. também, mas vamos ser sucintos por enquanto). Apoiados em uma ciência chamada Taxonomia, aprendemos que possuir um conjunto de características torna aquele bicho (ou planta, fungo e etc.) parte de um conjunto de caixinhas (táxons) que inventamos para conseguir compreendê-los melhor ao longo do tempo. Se vemos um bicho que tem pelos e mamas, rapidamente associamos ele à caixinha dos mamíferos, por exemplo.
Ao longo da nossa jornada no ensino formal, é de costume sermos apresentados a essa ideia de classificação das espécies - você provavelmente teve que decorar a expressão ReFiCOFaGE para alguma prova, né? Essas caixinhas tem sub-caixinhas, que cada vez aumentam mais a complexidade em se observar as características que as separam, até chegar em espécie - o nome e sobrenome científico dos seres. Conhecemos os grandes Reinos e alguns Filos, no máximo vemos algumas Classes importantes como os próprios insetos. Daí pra frente, geralmente, é com quem encara o estudo da biologia no ensino superior ou entusiastas.
Essa classificação acontece por associação/exclusão. Se o bichinho que estamos vendo tem seis pernas, olhos compostos e antenas, ele deve ser um inseto. Tal bicho jamais poderia ser um mamífero, que nunca teria antenas ou seis pernas até onde se sabe. Portanto, que papo é esse que eu falei lá no primeiro parágrafo sobre animais com pelos, dentes, escamas ou penas poderem ser lidos como insetos? Agora é que a parada fica interessante. Estamos saindo das tramas biológicas e caminhando para a interface entre as pessoas e os animais.
Fora da sala de aula e dos artigos científicos de biologia existem infinitas possibilidades de sistemas de classificação dos seres vivos, que se distanciam do sistema proposto por Lineu - esse que eu estava comentando contigo nos parágrafos acima. Classificar os seres é uma ideia que veio muito antes de Lineu, surge espontaneamente em diversos locais e espaços temporais como forma de tentar compreender a natureza. Podemos, por exemplo, classificar plantas em categorias como: venenosas, comestíveis, frutíferas, medicinais, úteis para fabricação de algo e etc. baseando-se em características que observamos e que as destaquem umas das outras. O mais legal é que cada categoria dessa pode ser interpretada de uma forma diferente dependendo de quem é aquele povo ou comunidade que criou essa classificação ao longo de sua existência. Resumindo, para além do sistema usado cientificamente junto à Taxonomia existem os sistemas populares ou étnicos, que categorizam os seres em caixinhas de acordo com suas vivências e saberes culturais, as Etnocategorias.
A etnocategoria “inseto” vai nos dizer quem a sociedade, de numa forma BEM generalizada, considera serem os insetos. E assim, deixa eu enfatizar a parte do “bem generalizada”, porque se formos conversar sob um contexto brasileiro já são ~220 milhões de pessoas das mais diversas origens e vivências num território continental - o que é um inseto para um leigo sudestino pode (e provavelmente vai) ser bem diferente do que é um inseto para um ribeirinho do amazonas. E é justamente assim que os insetos passam a ter características que, no sistema científico, jamais poderiam ocorrer nestes animais.
Se eu perguntar pra minha mãe agorinha alguns exemplos de insetos, não me espantaria receber respostas como lagartixa, rato, morcego, sapo e etc. junto com alguns exemplos do que são, cientificamente, insetos. Parece familiar? Em algum lugar por aí você já deve ter lido ou escutado coisa parecida, tenho certeza. Uma das formas mais comuns de enxergar o que é um inseto no Brasil, infelizmente eu diria, é juntando os bichos “nojentos”, “perigosos”, “feios”, “pragas” e toda a sorte de categorias depreciativas no mesmo balaio. Deixando os vieses de lado, tem algum sentido minha mãe achar que rato é inseto, não?
O imaginário popular em relação aos insetos leva em conta, ao meu ver, um mix de autoproteção e preconceitos. Inseto é o que pode te picar, te envenenar, passar doença; e também o que é feio, asqueroso, nojento, é qualquer coisa que tenha qualquer semelhança com uma barata doméstica. “Ah mas e a borboleta?” - ah, a borboleta é borboleta, pô! É bonita, dá em flor.. não deve ser inseto. Essa forma de classificar inseto é tão interessante que inclusive me lembrou de um episódio que aconteceu tempos atrás. Meu queridíssimo colega “dos insetos”, Bruno (do Observações Naturalistas), levou ao Twitter uma série de comentários que encontrou em uma postagem do portal G1 no Facebook. Nessa ocasião, o jornal se referiu aos gafanhotos chamando-os, corretamente, de animais. Nos comentários, diversas pessoas surgem completamente “reboliçadas” com a manchete, pois para elas os insetos seriam algo à parte dos animais. Exercício muito intrigante. Tá nesse post aqui se quiser conferir os prints.
Essa visão não é necessariamente ensinada na escola, mas facilmente se vê perpetuada nas vias culturais - nos jornais, nas produções audiovisuais, no papo do dia-a-dia, nas formas que nos portamos diante de um encontro espontâneo com esses animais na frente das pessoas. Se o jornal popular só fala em “vespas assassinas” e “aranhas mortais” quando aborda insetos, realmente fica complicado não montar uma imagem ruim dos caras, né? Se entra uma inofensiva mariposa pela janela e a minha primeira reação é a de buscar o chinelo, eu passo a ideia de perigo àquelas pessoas que estavam ali comigo. Isso tudo, associado à baixa percepção de biodiversidade que temos no cotidiano, facilmente resulta em atribuições pejorativas a esses bichos.
Quer dizer que todo mundo odeia todos os bichos que colocam na etnocategoria “inseto”? Claro que não. Reforço que, como categoria cultural, sua interpretação varia de acordo com o local e a comunidade - o contexto é muito importante. A generalização que faço aqui talvez se encaixe mais no que pensamos como “pessoas que vivem nas grandes cidades”, àqueles já alheios (muitas vezes, na verdade, privados) ao convívio com a natureza e os outros seres com quem dividimos o espaço terreno. Mas só de fazermos esse exercício, de tentar pensar em como as pessoas podem enxergar os insetos, abrimos nossa mente para outras formas de conversar sobre esses bichos.
Eu moro na favela, cresci com pouquíssimo contato com a natureza, até entrar na faculdade inseto pra mim também só representava tudo de ruim - como disse na minha introdução. Foi enquanto eu escrevia minha dissertação de mestrado que esbarrei nesse assunto, que mudou minha forma de enxergar a coisa de “desmistificar os insetos”. A gente tende a ser levado pelo pensamento academicista e achar que quem pensa que rato é inseto é ignorante e está errado, nos coçamos para corrigi-los sem solicitação. Hoje vejo que agir assim fora de um contexto condizente é a mais pura besteira, infantilidade acadêmica. Se a ideia é conversar, a gente não pode criar um monólogo, né? Escutar primeiro pode tornar esse tipo de aproximação muito mais interessante.
Como pretendo, entre outras coisas, me aproveitar desse espaço para passar minhas opiniões e aprendizados de como se falar sobre insetos, achei por hora que o primeiro passinho dessa caminhada seria esse: pensar o que é um inseto. Talvez pareça bobo no momento mas, juro pra você, muda tudo. Se a sua intenção é de falar sobre insetos, desenvolvendo um trabalho de desmistificação ou apenas fazê-lo de forma esporádica, é interessante estabelecer que o que Lineu te disse que é um inseto não abrange tudo do que seu público pode pensar. Você rapidamente vai se pegar falando sobre anfíbios, serpentes, morcegos e etc. e “defendê-los” é até mais difícil, viu? Atuar na mediação entre os bichos e as pessoas, no primeiro momento, pode parecer que é só vomitar informações sobre os bichos. Mas como disse lá em cima, isso não seria conversa, seria monólogo. Pra falar com gente tem que levar em conta o ser humano ali do outro lado, suas vivências, seus medos e preconceitos - e digo mais, tem que levar em conta os seus também!
Por hoje é só.